A criação do Parque Natural da Arrábida está inextricavelmente ligada a Sebastião da Gama [1] que em convalescença de uma tuberculose, viu o então dono da Mata do Solitário a cortar árvores para fazer carvão. O seu pedido de “socorro” por carta a um amigo chegou a Baeta Neves (mais tarde fundador da Liga da Proteção da Natureza, que por sua vez teve um papel decisivo da criação do Parque em 1976), ecoando numa sequência de encaminhamentos e pedidos, acabando por sensibilizar Oliveira Salazar a mandar comprar a Mata. [2]

Sebastião da Gama como “poeta herdeiro natural do romantismo” [3] mergulhou na Serra-Mãe descobrindo a Natureza como entidade sagrada. E coincidentemente, o romantismo foi uma espécie de rebelião contra a revolução industrial no séc. XVIII e XIX, uma reação à ameaça que o progresso representava então para o mundo natural. [4]

Passado mais de meio século desde a sua morte em 1952 os desafios à integridade da Serra perduram, seja em nome de uma sobrevivência económica ou pela generalizada aceitação da procissão do progresso e das suas promessas de triunfos e desenvolvimentos.

Foi pela sensibilidade do poeta que a Mata do Solitário (memória viva das florestas mediterrâneas primitivas) acabou por sobreviver até hoje, tão rara e especial que agora só se pode contemplar de longe, vedada que está ao cidadão comum e ao apetites da civilização, como uma recordação proibida da nossa vida numa terra pristina.

O poeta que salvou a Serra chamou-lhe Mãe, talvez porque o alimentava e curava pela sua beleza e sapiência. Agora, esse amor e intimidade com a Natureza, parecem ter sido convertidos na genérica necessidade de se ser “amigo do ambiente”, nas preocupações ecológicas, nos cuidados sobre a sustentabilidade do “desenvolvimento” e dos seus impactos ambientais.

Mas apesar de atualmente a sustentabilidade parecer ser utilizada quase universalmente como princípio regulador, a realidade da economia e dos seus apetites parece continuar a estar desligada da realidade da Natureza, das raízes que nos sustentam e que nunca poderemos substituir pelos frutos do progresso.

Arrábida e Indústria

A Arrábida é reconhecidamente um território de extrema singularidade e importância natural e cultural. Relato vivo da história da Terra e da relação dos humanos com a Natureza, a Arrábida é ancestralmente um lugar mágico, sagrado, de contemplação do mundo mais do que humano.

Um lugar de profundas riquezas naturais e patrimoniais que simultaneamente convive com os efeitos do progresso e do desenvolvimento económico: centenas de hectares de pedreiras em laboração há décadas, grande parte delas em pleno parque natural; desregulação do urbanismo (que se reflete no aparecimento sistemático de habitações em zonas protegidas ou “agrícolas”; na área do Parque Natural, desde a década de 60, existe um crescimento contínuo da edificação de cerca de 500% [5]); ambições de acolher grandes empreendimentos hoteleiros sem que se conheça qualquer estudo sobre os impactos no seu conjunto, nem que (muito menos) estes projetos sequer se assemelhem a projetos verdadeiramente sustentáveis – para além de atentados ambientais avulso: um aterro a céu aberto no Zambujal (com perigosos efeitos ambientais e para a saúde pública [6]), depósitos de entulho que se multiplicam todos os anos pela serra, lagoas de resíduos de suinocultura que ameaçam o lençol freático da Azóia, invasão lúdica de veículos motorizados em zonas protegidas ou as dezenas de barcos de recreio e de pesca que todos os dias poluem sonoramente o mar.

Um dos muitos “fechamentos” e a privatizações da Arrábida – terra utilizada para pasto; frequentemente invadida por veículos de recreio todo-o-terreno.

As Pedreiras da Arrábida

A extração de rocha na Arrábida remonta aos tempo da ocupação romana, tendo sido amplamente utilizada na construção da Baixa Pombalina e na reconstrução de Setúbal após o terramoto de 1755 [7].

Atualmente as pedreiras na Arrábida estendem-se por uma área superior a 300 campos de futebol (323 hectares ou o equivalente a 1.5 vezes a área da vila de Sesimbra) dentro da extensão protegida que totaliza 12.328 hectares – em 1976, quando o Parque Natural da Arrábida foi criado ocupavam apenas metade deste espaço [8].

Sustentabilidade da mineração de calcário

A mineração em conjunto com a agricultura representa uma das actividades humanas mais antigas, ambos eixos fundamentais do progresso civilizacional [9] .

O calcário é uma matéria-prima crucial em vários sectores industriais, tendo uma procura crescente e um correspondente aumento de valorização do seu mercado [10]. No entanto, para além de uma fonte de crescimento económico para os envolvidos neste sector, a mineração de calcário tem uma miríade de impactos negativos irreversíveis: alteração dramática da paisagem e do solo, perda de habitats e biodiversidade, poluição sonora, emissões de poeiras, mudanças estruturais nos aquíferos [11]. Mas independentemente desses impactos, a mineração de calcário nunca pode ser considerada sustentável pelo simples facto de ser um material não renovável.

A paisagem distópica da cimenteira.

Produção de Cimento no Parque Natural da Arrábida

O Parque Natural da Arrábida alberga uma das maiores fábricas de cimento de Portugal – considerada a 10º maior poluidora em Portugal em 2020. [12]

O cimento criado a partir do calcário é uma das principais fundações do desenvolvimento moderno. É com esse material que tentamos domar a Natureza, com que construímos casas, escolas, hospitais e pontes. Mas também é o cimento que sepulta extensões intermináveis de solo fértil, que obstipa rios, sufoca habitats e que nos dessensibiliza para o que existe para além das nossas fortalezas urbanas. [13]

O cimento produzido no mundo gera mais poluição por ano do que todos os camiões do mundo combinados [14] sendo um dos maiores causadores de gases de efeito estufa [15]. Se o plástico tem agora uma má reputação, infiltrando-se em todos os recantos do planeta, na nossa comida e no nosso corpo, o cimento continua silenciosamente em crescimento: os 60 mil milhões de toneladas de plástico produzidas nos últimos 60 anos são ultrapassadas pela indústria do cimento a cada dois anos. [16]46

Se é verdade que, nas palavras do CEO da Secil em 2022, “não é possível substituir o betão nas nossas vidas” [17] também é verdade que dada a situação em que nos encontramos temos inevitavelmente que reconsiderar as nossas vidas e os nossos hábitos – recordemos: é consensual que o mundo está agora perante um colapso ecológico generalizado fruto do progresso civilizacional [18] .

Turismo Sustentável na Arrábida

Às portas de Lisboa, a Arrábida tem um potencial turístico imenso, que se pode adivinhar pelos últimos grandes empreendimentos previstos para a região – só considerando a zona de Sesimbra / Meco, foram viabilizadas nos últimos anos centenas de novas unidades de alojamento com milhares de camas (mais de 4000) [19] numa área combinada de centenas de hectares em zonas protegidas pela sua biodiversidade (Rede Natura 2000), que passarão a ter uma utilização maioritariamente privada e com grande destruição.

Os argumentos a favor da construção destes grandes empreendimentos são de alguma forma compreensíveis. O desenvolvimento económico, a criação de empregos, a geração de riqueza ou o desenvolvimento do turismo na região são normalmente as razões de quem apoia, não se opõe ou sente como algo inevitável. No entanto, nenhum destes empreendimentos turísticos aparenta ter preocupações sobre a sustentabilidade, para além de utilizar no seu nome ou descrição as palavras “eco” ou “sustentável”, o que implica que dificilmente estes empreendimentos possam trazer mais benefícios do que custos.

Segundo a Organização mundial do Turismo, o turismo sustentável implica: uma contribuição para a conservação do património natural e biodiversidade; respeito pela autenticidade cultural das comunidades anfitriãs, conservando o seu património cultural; assegurar benefícios sócio-económicos para todos os envolvidos. [20] 19

Os grandes empreendimentos hoteleiros previstos para Sesimbra / Arrábida, dificilmente poderão corresponder a qualquer uma destas condições e muito menos à obrigatoriedade do turismo sustentável requerer “a participação informada de todos os interessados relevantes, assim como uma forte liderança política que assegure uma participação alargada e uma construção de consenso” [21] .

Ou seja, apesar do desenvolvimento do turismo ser aparentemente uma necessidade consensual ou largamente tida como inevitável, é evidente que esse consenso não é baseado numa análise razoável relativamente às consequências desse “desenvolvimento” nem a longo nem a médio prazo.

A Serra e as Terras do Risco.

Ecoliteracia

Em 1973 num documentário sobre as pedreiras e o turismo na Arrábida dizia-se: “O património comum [da Serra da Arrábida] é uma dádiva da natureza. É no interesse de todos nós que temos de defender toda esta riqueza, toda esta beleza, preservando-a das especulações e da cobiça, dos ignorantes, dos mal intencionados, dos gananciosos” [22]. Passado mais de meio século, as semelhanças à situação atual são assombrosas. Apesar das guerras, pandemias e crises económicas assolarem o nosso espírito com preocupações imediatas, continua a não parecer viável que a Arrábida e o seu Parque Natural possam coexistir com esta pletora de atividades não sustentáveis a troco de um “desenvolvimento económico”, sem correr o risco de se contradizer o espírito fundamental da conservação da Natureza e da nossa própria sobrevivência.

Mas a inabilidade na gestão deste território é ainda mais visível se se considerar a quase total ausência de uma estratégia consistente de educação ambiental ou da aparente inexistência de um plano estratégico para a sustentabilidade da região – por exemplo, o corrente acto estático que compõe a política de conservação do Parque e do património da região parece traduzir-se em ideias proibicionistas ou desencorajadoras do contacto directo com a Natureza, em sugestões de visita por automóvel ou idas à praia [23] .

Se é verdade que as restrições às áreas protegidas poderão ter tido um impacto positivo na sua preservação, será ainda mais certo constatar que a conservação de áreas naturais não é uma atividade primariamente sobre biologia, mas sobre as pessoas, sobre as nossas escolhas e sobre o nosso comportamento [24] e sobre o que estamos dispostos a aceitar a troco do progresso.

Na verdade, a nossa crise ambiental é uma manifestação exterior de uma crise mental e espiritual. Ou seja, não poderia existir maior equívoco relativamente ao seu significado do que acreditar que a crise ambiental é apenas relativa a ameaças à vida selvagem ou poluição: estes elementos são parte dessa crise, mas fundamentalmente a ela é relativa aos tipos de criaturas que somos e em que nos devemos transformar para conseguirmos sobreviver. [25]

As palavras de uma habitante da zona das pedreiras em 2001 sobre o que contemplava das cercanias da sua casa são estranhamente sapientes: “Destruíram tudo […] Agora já só vejo uma serra de pó”, dizia num tom calmo, confiante, quase sorridente, apesar da enormidade do que descrevia [26] . O tempo de desesperos e desesperanças já passou, agora é o tempo da ação. Devemos mudar a nossa economia e forma de vida em direcção a uma sociedade sustentável e para isso precisamos de uma cidadania “eco-letrada”, consciente da nossa interdependência com todas as coisas vivas, disposta a agir conforme essa consciência.

É um imperativo, agora, que voltemos a mergulhar na Serra com a fruição e cuidado do poeta. A Arrábida encerra o nosso passado e o nosso futuro. Não é simplesmente uma paisagem para ver de longe. A Arrábida é a nossa Terra.









[1] https://arrabidaparquemarinho.ualg.pt/historia-do-parque

[2] Lusa (2018). LPN, a associação que começou com botânicos, um ditador e um poeta. Diário de Notícias
https://www.dn.pt/lusa/lpn-a-associacao-que-comecou-com-botanicos-um-ditador-e-um-poeta-9734198.html

[3] Santos (2007). Sebastião da Gama – milagre de vida em busca do eterno: uma leitura da sua obra. Dissertação de Mestrado. http://hdl.handle.net/10400.2/610

[4] Caradonna (2014). Sustainability: A History. New York: Oxford University Press

[5] Ferreira (2014). Estudo da evolução do edificado no Parque Natural da Arrábida utilizando sistemas de informação geográfica. Dissertação de Mestrado. https://run.unl.pt/handle/10362/13192

[6] Ferreira & Ribeiro (2021). Praia Ribeiro do Cavalo pode estar contaminada por resíduos de aterro. Euro Região
https://euroregiao.com/praia-ribeiro-do-cavalo-pode-estar-contaminada-por-residuos/

[7] Writers (2011). A Secil e a Ciência na Arrábida. Revista Valorizar / Secil-Outão
https://www.secil-group.com/content/dam/secilInstitucional/documentos/pt/documentos/revista-valorizar/Valorizar-2011.pdf

[8] Tomás (2010). Arrábida esventrada. Expresso
https://expresso.pt/dossies/dossies_ciencia/dossie_mes_do_ambiente_do_expresso/arrabida-esventrada=f604025

[9] Bell & Donnelly (2006). Mining and its Impact on the Environment. Routledge

[10] Global Limestone Market Size, Industry Report, 2020-2027. Grand View Research.
https://www.grandviewresearch.com/industry-analysis/limestone-market

[11] Ganapathi & Phukan (2020). Environmental Hazards of Limestone Mining and Adaptive Practices for Environment Management Plan. In Singh (Ed) (2022). Water Science and Technology Library book series (WSTL,volume 91). Springer

[12] Silva (2021). Entrevista / Secil corta nos combustíveis fósseis para produzir “cimento de baixo carbono” em Setúbal. Sapo.pt https://eco.sapo.pt/entrevista/secil-corta-nos-combustiveis-fosseis-para-produzir-cimento-de-baixo-carbono-em-setubal/

[13] Watts (2019). Concrete: the most destructive material on Earth. The Guardian. https://www.theguardian.com/cities/2019/feb/25/concrete-the-most-destructive-material-on-earth

[14] Dezem (2019). Cement Produces More Pollution Than All the Trucks in the World. Bloomberg.
https://www.bloomberg.com/news/articles/2019-06-23/green-cement-struggles-to-expand-market-as-pollution-focus-grows?leadSource=uverify%20wall

[15] Environmental impact of concrete. Wikipedia https://en.wikipedia.org/wiki/Environmental_impact_of_concrete

[16] Ver Nota 13

[17] Petiz (2022). Indústria do cimento reinventa-se, mas sem regras iguais a revolução morre na praia. Dinheiro Vivo. https://www.dinheirovivo.pt/empresas/industria-do-cimento-reinventa-se-mas-sem-regras-iguais-a-revolucao-morre-na-praia-14809531.html

[18] Osano (?). Ecological collapse. Global Challenges Foundation. https://globalchallenges.org/global-risks/ecological-collapse/

[19] Patrício (2021). “Se a memória não me falha”, o “Pinhal do Atlântico” foi aprovado o ano passado! Blogspot.
https://felicidadedepassarolivre.blogspot.com/2021/07/se-memoria-nao-me-falha-o-pinhal-do.html

[20] Making Tourism More Sustainable – A Guide for Policy Makers, UNEP and UNWTO, 2005, p.11-12
https://www.unwto.org/sustainable-development

[21] Ver Nota 20

[22] Documentário RTP (1973). Problemas Ambientais na Serra da Arrábida. https://arquivos.rtp.pt/conteudos/a-serra-da-arrabida/

[23] https://natural.pt/protected-areas/parque-natural-arrabida?locale=pt

[24] Wrigh, Veríssimo, Pilfol, Ventre, Cousins, Jefferson, Koldewey, Llewellyn & McKinleyk (2015). Competitive outreach in the 21st century: Why we need conservation marketing. Ocean & Coastal Management. Volume 115, October 2015, Pages 41-48

[25] Scott, Amel, Koger & Manning (2016) Psychology for sustainability. Routledge

[26] Documentário RTP (2001). O triunfo das pedras. https://arquivos.rtp.pt/conteudos/o-triunfo-das-pedras/

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